Por João Capiberibe*
Contra a História. Dilma Rousseff não foi a única vítima do impeachment. Está em curso o desmonte da Constituição Cidadã, celebrada por Ulysses Guimarães em 1988.
Há palavras que ficam de tal modo impregnadas de afeto, de sentimento, que seu uso puro e simples chega a impedir que o pensamento realize o trabalho de reflexão. É o que ocorre, neste momento de nossa história, com o uso da palavra “golpe”.
Para uma porção expressiva da população, ela não se presta a tipificar a situação político-institucional fática em que se encontra o Brasil, mas a fazer a defesa dos governos petistas e, mais particularmente, de seus quadros. Deixemos, portanto, a palavra “em espera, suspensa” e passemos a considerar alguns fatos.
É flagrante o repúdio da maioria da população à agenda governista, que destrói, por exemplo, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e a Previdência Social. Essa evidência, contudo, não sensibiliza o principal agente do processo, que foi advertido a deixar de lado os reclamos da rua pelo primeiro-ministro espanhol, Mariano Rajoy, que conduziu processo semelhante em seu país. O grosso do Congresso Nacional tampouco se inclina a levar em conta os clamores populares.
Se considerarmos que em 2014 nenhuma candidatura se elegeria com a agenda política atual, fica evidente haver um conflito entre os mandatos populares outorgados à época e o modo como eles são exercidos atualmente. Há, portanto, uma contradição entre representantes e representados. Mandantes e mandatários.
A agenda política do governo, contudo, é muito mais ampla do que as suas pretensas “reformas”. Ocorre a rigor, neste momento, um amplo desfazimento do pacto civilizatório, que se cristalizou na Constituição de 1988. As evidências são flagrantes: ao SUS, que não chegou a ser completamente implantado, se contrapõem os “planos de saúdes populares”. A reforma do ensino médio parece ter sido feita com o objetivo maior de criar uma educação para os pobres, no sentido de lhes destinar um conhecimento operacional e não crítico sobre o mundo onde vivem. As populações tradicionais são tratadas como inimigas da Nação, por supostamente representarem um fardo que se opõe ao “progresso”. A agenda ambiental é progressivamente desqualificada em nome da prosperidade do agronegócio. As instituições que defendem os trabalhadores são estigmatizadas, a ponto de serem tratadas como se fossem não mais do que confrarias de “vagabundos e preguiçosos”.
Por que as coisas se passam assim? Não é curioso que uma grande porção dos detentores de mandato popular se oponha aos eleitores, como se não fossem se apresentar a eles em 2018? Aqui está o grande e fatídico problema: esses representantes não prestam ou prestarão contas ao povo, mas ao poder econômico que efetivamente os elegeu. Esses potentados econômicos, por sua vez, nada têm de nacionais, apesar de serem brasileiros em muitos casos. Eles se articulam diretamente com outros de sua espécie no âmbito internacional, que repetem essa mesma indiferença para com a população, que ocorre no Brasil.
A agenda governista jamais seria legitimada por eleições livres ou pelo apoio popular
Vejam o que se passou com o Partido Socialista francês, com sua impopular reforma trabalhista e a eleição justamente de um “banqueiro”, para dar sequência a esse mesmo processo de natureza liberalizante. Essa eleição expressa muito mais a resistência ao grande mal, que representaria o sucesso da Frente Nacional, do que o apoio à agenda de Emmanuel Macron. Ou seja, a situação social e econômica ignominiosa alimenta a ameaça fascista, que converte o jogo político em prisioneiro da centro-direita, algo que faz com que a extrema-direita seja funcional, para fins de manutenção do status quo.
Como previram muitos teóricos no início desse processo, a globalização produziu elites internacionalizadas, que exploram sem qualquer inibição, ou limites, populações que se tornam progressivamente redundantes, em razão do estupendo aumento da tecnologia aplicada ao processo produtivo.
No cenário da globalização excludente iniciado em princípios de 1980, pouco importa o povo, permanentemente assombrado pelo fantasma da redundância produtiva. Os países que não compreendem esse fato e pretendem manter projetos nacionais autônomos têm sido postos de joelhos pela asfixia produzida essencialmente pelo capital financeiro, que comanda a seu bel-prazer o financiamento das dívidas soberanas, mundo afora, fato amplamente demonstrado, por exemplo, no caso da Grécia.
Feito esse breve percurso, retomemos agora a palavra golpe, para lhe restituir um sentido mais preciso. Ele foi e tem sido desferido contra as expectativas inclusivas da Constituição de 1988. A ordem institucional foi rompida, portanto, não apenas pelo afastamento da presidenta Dilma Rousseff, mas pelo fato de que tal afastamento está sendo utilizado para rasgar a Constituição de 1988, sem que a população seja minimamente consultada.
Trata-se, precisamente, cientificamente, de um golpe, portanto, pois a atual agenda governista jamais poderia ser implementada com o apoio popular e legitimada por eleições livres. É um golpe, porque estamos diante de um processo francamente desconstituinte, que se faz sem que se guarde respeito mínimo aos preceitos apropriados a tal situação, ou seja, a convocação de um Congresso Constituinte e a votação de mudanças constitucionais por maioria absoluta.
Passarão? Até aqui sim, mas a história nunca está completa ou escrita definitivamente. Cabe a esta altura à população, em particular, fazer rolar seus muitos dados e alterar o resultado do jogo, no qual o governo aposta todas as suas fichas.
*Senador pelo PSB-AP