No Igarapé das Mulheres vivi minha segunda infância e minha adolescência. O cenário de pobreza que emoldurava nossas vidas cobrava tributo aos mais vulneráveis e indefesos: as crianças do bairro. Mesmo bebendo água do poço da dona Mundica, que ficava a poucos metros da fossa negra, e de outras tantas ameaças invisíveis: coqueluche, sarampo, varíola, verminose, tuberculose e malária, o que posso lhes dizer é que escapei por um triz! Consegui furar o cerco, sobrevivi!
Minha mana Raquel tem alguns anos vividos mais que eu. Antigamente, nas famílias de muitos filhos, éramos sete, os mais velhos cuidavam dos mais novos, a ela então cabia cuidar de mim. Ela lembra de muitas histórias, inclusive do dia em que eu morri abatido por uma doença danada que na época era epidêmica, hoje ainda endêmica e comum na nossa região, a malária. Mais que uma doença, um problema político, ao que pese o avanço da ciência, na Amazônia ela continua atormentando comunidades pobres de áreas insalubres.
Não esqueço dos incômodos das várias malárias que enfrentei. Quando ardia em febre, uma sede alucinante me levava ao delírio, transportando-me para um deserto escaldante no qual vagava suplicando por água. Para me acalmar, Raquel colocava um chumaço de algodão úmido nos meus lábios, o desespero era tamanho que a qualquer descuido dela eu engoliria o algodão. A sede pavorosa vinha acompanhada de um frio intenso, doloroso, incontrolável. Na verdade, ainda hoje, vez por outra, sem menos esperar sinto o mesmo frio terrível das malárias da minha infância, como se o plasmódio tivesse voltado a invadir meu corpo. Instado por Artionka, minha filha e parceira literária, busquei um médico a quem pedi explicações. Disse-me que os bichinhos da malária chamados P. Falciparum e P. Vivax, que se alojam no fígado, mesmo combatidos pela cloroquina, resistem em estado latente, e quando a pessoa é submetida a estresse, os sintomas podem voltar, principalmente o frio intenso.
Lembro vagamente que morri antes de completar dez anos, mas não lembro, e até hoje não me contaram, como se deu meu retorno ao mundo dos vivos. Quando ressuscitei descobri bolhas em minhas mãos, marcas de queimaduras leves. Raquel que era agente de endemias, trabalhava no Departamento Nacional de Endemias Rurais (DNERU), revelou-me que o tratamento pesado com cloroquina teria me deixado em coma profunda. O médico do Hospital Geral de Macapá jogou a toalha, deu o caso por encerrado, e recomendou a meus pais que me levassem para morrer em casa. E assim foi feito, mas lá pelas tantas eu acordei. De lembrança da tormenta restou, por alguns anos, as marcas das queimaduras. É que antigamente, nos velórios, era costume cruzar as mãos do defunto e entre os seus dedos espetar uma vela acessa, o que explica as bolhas nas minhas mãos causadas por pingos de cera quente.