Bom dia! Com licença! Veja o que lhe mandou o senador Cristovam Buarque. Fabihana me entregou um canudo de papel, peguei de suas mãos, e, curiosamente ao ir desenrolando, deparo-me com uma charge do Angeli. Olhei a data, não havia. Atentei-me às figuras caricatas, de um lado, um militar corpulento brandindo um cassetete, no alto à esquerda, um fac-símile como se dizia na época ou print na linguagem de hoje, com a manchete:
“Exilada poderá circular por todo o país”
Brasilia (sucursal) – Ao ser ouvida informalmente, no Dops de Brasília, a exilada Janete Góes Capiberibe recebeu garantias do diretor regional daquele órgão, Paulo de tal, que poderia circular livremente pelo território nacional…
Triste lembrança! Felizmente sumida na curva do tempo! Mas naquela terça-feira de agosto, de um ano insólito, os traços de Angeli, deixaram-me a flor da pele. Ano em que nossa seleção tomou de sete a um da Alemanha e uma tragédia retirou da cena política o promissor líder socialista Eduardo Campos. Acrescente-se, às vésperas de eleições gerais no país com crise na porta. Aquele remexida no baú do tempo me deixou atônito, as visagens do passado invadiram meu gabinete de senador da República.
Passei alguns minutos observando a charge, pensando naqueles dias sombrios, perdidos nos labirintos da memória, parcialmente soterrados pela democracia. Tempo incerto, em que uma mulher acompanhada de três filhos pequenos, imaginando uma coisa na partida, depara-se com o inusitado na chegada. Sequestrada com três crianças ao descer do avião no aeroporto do Galeão no Rio de Janeiro, vinda de Joanesburgo, vinte e quatro horas depois reaparece em Brasília sendo ouvida “informalmente” pelo DOPS ou Departamento de Ordem Política e Social ou ainda, a polícia política do regime.
Fabihana, minha secretária, retorna ao gabinete, dessa vez sem pedir licença, traz-me de volta ao mundo do agora, anuncia-me Cristovam na linha. Ainda sob impacto da revelação lhe agradeci comovido. Perguntei-lhe como havia descoberto aquela reminiscência, e se saberia me dizer o nome do jornal e a data da publicação. Não, sua assessoria não lhe havia dado mais detalhes. Comentou sobre o drama e a coragem de Janete ao enfrentar a tormenta, queria saber mais sobre aquele episódio que Angeli fizera emergir dos anos de chumbo. Ficamos alguns minutos conversando sobre as incertezas da vida cotidiana fora da democracia, mas de repente caímos na real e no presente. Passados tantos anos, e com tantas leis assegurando direitos, as violações continuam, atingindo principalmente e brutalmente, os que vivem apartados, os que não frequentam os magníficos templos de consumo: os shopping centers, instalados aqui e acolá, nos grandes desertos urbanos.
Em algum momento falei da Favela da Rocinha, na zona sul do Rio de Janeiro, com a cabeça no céu e os pés no asfalto, onde se aglomeram mais de cem mil almas. Cristovam lembrou de Amarildo, seis filhos, ajudante de pedreiro, nascido e criado por ali, conhecido e reconhecido pela vizinhança como gente boa. Amarildo estava em sua casa no alto do morro, curtia o domingão na companhia dos filhos e da mulher, confundido com traficante foi arrancado da família, preso por policiais militares, levado em direção à sede da Unidade de Polícia Pacificadora da Rocinha, poucas horas depois, desaparece. Isso mesmo! Sumiu pelas mãos dos homens da lei, que tinham obrigação de protegê-lo, mas que o mataram, e desapareceram com seu corpo.
Muito tempo antes desse fatídico 14 de julho de 2013, em que Amarildo foi sequestrado e desaparecido, Rubens Paiva, cinco filhos, engenheiro civil, empresário e deputado federal, morador do Leblon na zona sul carioca, teve seu dia trágico. Aconteceu na quarta-feira, 20 de janeiro de 1971, feriado consagrado a São Sebastião, patrono da cidade do Rio de Janeiro. Ele acabara de retornar da praia, os filhos menores ainda dormiam, ele conversava no quarto com Eunice, sua mulher, quando ouviu alguém bater, adiantou-se para abrir , deparou-se com os olhos esbugalhados de uma das empregadas da casa que lhe disse: – tem umas visitas querendo falar com o senhor. Quando entrou na sala, quatro metralhadoras apontavam em sua direção: mãos para cima! esteja preso! Sem se identificarem e sem apresentarem mandado de prisão, os homens das metralhadoras o levaram, e até hoje, do seu corpo não se tem notícias.
Cenas de ontem e de hoje, quanta semelhança! Isso me faz pensar que os seqüestradores de hoje se inspiram nos exemplos do passado. Ora! Dirão eles! Se os que antigamente prenderam, torturaram, mataram e sumiram com o corpo de gente importante como deputado, padre, artista, jornalista, professor, estudante etc, e nada lhes aconteceu de ruim, pelo contrário, gordos e rosados curtiram o bem bom da vida. E pasmem! Até bem pouco, eram saudados como heróis. Logo, matar e sumir com o corpo negro de um anônimo ajudante de pedreiro, morador da periferia, é o de menos. Não pega nada! Podes crer! Diriam os assassinos de Amarildo.
Cristovam concluiu lembrando que, diferentemente de outros países da América Latina que na transição democrática fizeram acerto histórico com suas ditaduras levando seus torturadores aos bancos dos réus, no Brasil esse tipo de gente ficou impune e protegida , e suas práticas criminosas fizeram escola, atravessando o tempo, chegando aos nossos dias.