Ouvindo o depoimento de Juca Alves para a Comissão Nacional da Verdade, lembrei-me da visita que eu e Mara fizemos a seus pais em Macul, na periferia de Santiago (Chile), em 1972. O trecho abaixo está na página 286 do meu livro de memórias “Florestas do Meu Exílio”:
Na volta a Santiago, encontrei Mara na Caixinha, conforme tínhamos combinado na festa de Nazaré. Fomos visitar Leta e Washington em Macul. O casal, de pouco mais de 50 anos e sem falar castelhano, sobrevivia do artesanato. Ele fabricava bolsas e sandálias em couro cru, enquanto ela, utilizando-se da técnica do batique, reproduzia belíssimas estampas em bolsas, cangas e lenços de cabeça.A oficina de trabalho ocupava a sala e o pátio da casa onde moravam com seus três filhos. Uma boa parte das peças produzidas era vendida em um quiosque gerenciado por Nazaré, localizado em plena avenida Bernardo O’Higgins, na calçada mais movimentada da cidade.
O lugar também servia de ponto de encontro de brasileiros que zanzavam pelo centro. Leta parou sua atividade, foi à cozinha e em poucos minutos retornou com uma cafeteira fumegando, espalhando um perfume delicioso pela sala.– É do Brasil – disse. – Nesse aspecto, não posso me queixar da sorte, uma vez por outra alguém se lembra de mim e me manda de São Paulo essas preciosidades.Depois do café, as histórias fluíram. Leta nos contou que, em julho de 1970, sua filha Jesse, o genro Colombo e mais dois amigos, os irmãos Fernando e Eiraldo, tentaram sequestrar um avião no aeroporto do Galeão no Rio de Janeiro. Deu tudo errado, foram todos presos e levados para o comando da Aeronáutica. Eiraldo, ferido na ação, não resistiu as torturas e morreu poucas horas depois.
Sua filha, o genro e o amigo Fernando, depois de cruelmente torturados, foram mandados para a penitenciária, onde se encontravam até então.A partir daí, mesmo sem qualquer participação no evento, a família se dispersou e passou a viver escondida na casa de amigos, até que conseguiu deixar o Brasil – Washington, pela Argentina, com o filho mais velho, e Leta, pela Bolívia, com os outros dois. Ao ouvir referência à Bolívia, lembrei-me do que me havia contado o dr. Ramon
sobre a ajuda prestada a uma brasileira e seus dois filhos. Só podia ser ela.– Você entrou por onde na Bolívia?
– Por Guayaramerín – respondeu.
– Voc. conheceu o dr. Ramon?
– Sim, foi uma bênção encontrá-lo, nos ajudou muito.
– Puxa! Como esse mundo é pequeno!
Ele também nos ajudou.Batemos em sua porta sem eira nem beira, apresentados por uma carta de um ex-companheiro de prisão que o conhecia. É inacreditável! Passamos pelo mesmo lugar e fomos ajudados pela mesma pessoa!Leta e os filhos, no entanto, não estavam na lista dos procurados, e dispunham de documentos legais que lhes permitiram chegar de avião a Porto Velho, depois atravessar a fronteira boliviana por Guayaramerín, e seguir, sem maiores problemas, até o Chile.
Enquanto Leta contava os dramas vividos pela família, Washington continuava em silêncio, no seu labor com as bolsas. Em dado momento, interveio para dizer que tinha o coração partido: um lado, sofrido, ofegava sentindo a aflição da filha na prisão; o outro, terno e descontraído, no Chile, ao lado da esposa e dos filhos.– Tem dias – disse ele – que me sinto como se estivesse morto, mas, quando recebo as cartas semanais de Jesse, me dou conta de que apenas parti para um lugar distante, que a vida continua fazendo sentido quando a gente luta pelo que acredita. Jamais pensei ou cogitei um futuro incerto para os meus filhos, sempre trabalhei duro para permitir que estudassem e entendessem a vida com absoluta Independência e liberdade.
Mas, de repente, eles se viram em conflito com a boçalidade e a arrogância de governantes que lhes negavam direitos mínimos e responderam com rebeldia. Jesse Jane caiu primeiro. Por enquanto, conseguimos preservar os outros. Até quando? Essa é a questão. Se um dia desses algum deles decidir retornar ao Brasil para retomar a luta, que não é apenas de sua irmã, mas de todo o povo brasileiro, não serei eu a impedir.Quem nasceu e cresceu sob o signo do livre-arbítrio não pode viver contido.
De Jesse ou de qualquer um de seus irmãos eu não poderia esperar outra atitude.Ele pediu que Leta fosse buscar as cartas da filha. – Acho que vendo o que ela escreve vocês vão entender o que eu não consigo transmitir com palavras.Leta retornou com um mão de cartas, cuidadosamente envolvidas em um lenço de cabeça em que ela havia estampado uma pomba branca com um ramo de oliveira no bico, voando num céu azul.– Vejam essa aqui, a primeira que recebemos – disse Washington. Em seguida, nos repassou a carta. Quase não havia o que ler nas cinco folhas de papel de seda escrita por Jesse Jane: a censura da penitenciária havia borrado a carta por inteiro, deixando frases soltas, sem sentido.– Pois então – retomou Washington –, é o que vocês estão vendo.
Mas o que eles não sabem é que as poucas palavras que nos restam servem para acreditar que um dia este pesadelo vai ter fim. Para falar a verdade, estou cada dia mais otimista, porque, nos últimos
tempos, as coisas estão melhorando. As últimas cartas têm chegado borradas só pela metade.Depois da longa conversa acompanhada por três rodadas de café do Brasil, saímos emocionados, entendendo melhor por que a residência daquele casal era tão especial – um ponto de encontro de exilados, sempre cheio de brasileiros que os cercavam de atenção e que também buscavam diálogo e aconchego.
Juca Alves da CAL-ES; ex-exilado político, que após o golpe militar no Chile, ficou preso, juntamente com seu pai, Washington Alves; deu um depoimento que nos emocionou, relatando que perseguidos e exilados políticos, seguiram para a Bolívia de onde tiveram que sair em seguida, logo após o um golpe militar naquele país. Seguiram para o Chile, do governo socialista de Salvador Allende. Outro golpe, fugas, de país em país, pois os governos eleitos democraticamente foram caindo como dominó, vitimados por golpes militares.
Disse que a solidariedade prestada por cidadãs e cidadãos latinos americanos foi fundamental para que conseguissem escapar das atrocidades das ditaduras recém inauguradas nos países sul americanos pelos quais passaram.
Assista aqui o depoimento: https://www.youtube.com/watch?v=JRDbIM33Zyw